TRINTA REFERÊNCIAS AO PAI NA LITERATURA: DE ABRAÃO A LAERTE!

Pai é uma palavra curta e com múltiplos significados. Independentemente das emoções que esta palavra desperta, é um fato que para estarmos aqui vivos, todos nós tivemos um pai e uma mãe biológicos. Mas o conceito de família nuclear com um pai, uma mãe e filhos surgiu depois da Revolução Industrial. Antes a família comportava um grande número de agregados. Há também tribos matriarcais sem o conceito de pai. A palavra mais próxima que eles tem significa qualquer homem que pode cuidar de crianças.

O PAI NAS RELIGIÕES JUDAICA, ISLÂMICA E CRISTÃ

Analisando a cultura islâmica judaico cristã que formou a nossa sociedade, vamos buscar na Bíblia o conceito de pai. Abraão significa pai de multidões. Tratava-se de um homem idoso e rico que não tinha filhos. Deus lhe promete um filho da sua esposa Sara. O casal não acredita e Sara dá sua serva egípcia Agar para que a Abraão tenha um filho com ela. Dessa união nasceu Ismael. Mais tarde Sara tem o filho da promessa, Isaque. Nesse contexto, Abraão fica com duas mulheres brigando pela preferência dos filhos. Ele se vê pressionado por Sara e acaba decidindo abandonar Agar e Ismael no deserto sem água e sem comida para morrer. Mãe e filho se salvaram. 1 Mitologicamente essa é a origem dos judeus (descendentes do filho amado Isaque) e dos árabes (descendentes do filho rejeitado Ismael). Essa é a explicação para os constantes desacordos entre os dois povos. Nem de longe, isso passa perto do ideal de paternidade que temos hoje. Isso seria hoje, um pai que tenta matar a mulher e o filho para não pagar pensão alimentícia, mas Deus vai lá e conserta.

Outro pai emblemático do Velho Testamento é o profeta Samuel. Sua mãe Ana era estéril, o que equivaleria a ser totalmente inútil para aquela sociedade. Humilhada e desesperada, ela pede um filho a Deus e concebe Samuel. Como ele foi uma promessa divina, ela dá Samuel a um sacerdote (Eli) que tinha problemas com os filhos. Nenhum de seus filhos foi apto a dar sucessão ao seu sacerdócio, porque eles eram todos insubordinados e indisciplinados. Mas Samuel foi capaz. Isso deve ter sido uma dor no coração de Eli. Anos mais tarde, parece que Samuel cometeu os mesmos erros que seu mentor. O povo vai reclamar do desleixo e da arrogância dos filhos de Samuel e ele responde algo como “vocês me acusam disso e daquilo”2. Ninguém estava acusando Samuel, e, sim, os filhos dele, mas ele era um pai tão cego que tomou as críticas aos filhos como uma crítica a ele e essa foi a sua ruína.

Imagem retirada do PixaBay.

No Novo Testamento, Jesus chamava Deus de Pai. Alguns acham que era para reforçar o ideal de pai naquela sociedade. Já que os homens eram quase completamente isentos de qualquer responsabilidade parental. Além disso, há José. Chamado pelos católicos de São José.  José agiu ao decidir se casar com Maria e depois ao decidir leva-la grávida para o exílio. Cabe lembrar que o Alcorão, livro sagrado para os muçulmanos, também fala de Jesus e de Maria. Ele tem uma surata inteira chamada Maria. 3 Na versão islâmica, José é um pai um pouco mais atuante. Ele realmente salva Maria da morte por apedrejamento ao decidir que se casaria com ela mesmo grávida. Depois disso, tanto o Alcorão quanto a Bíblia se calam. Levando a crer que Jesus ficou órfão ainda muito jovem.

O Novo Testamento carece um pouco de exemplos de paternidade. Pedro foi casado (pois ele tinha uma sogra), mas não há nenhuma referência a filhos. Paulo só se refere a filhos espirituais. São Tomás de Aquino, aos olhos atuais, possuía uma família com distúrbios psicológicos graves. Quando ele se torna cristão, ele abandona a mulher que vivia com ele (e com quem teve um filho). Não existe nenhuma referência a algum salvamento milagroso como o de Agar, a egípcia do Velho Testamento. Então possivelmente a mulher de São Tomás de Aquino, depois da conversão dele ao Cristianismo, morreu de fome e na miséria, possivelmente foi forçada a se prostituir antes. A criança morreu algum tempo depois.

O PAI NAS RELIGIÕES BUDISTA E HINDUÍSTA

O fundador do Budismo, Sakyamuni Buddha, também tinha acabado de ser pai quando decidiu abandonar sua mulher e seu bebê para buscar a iluminação. No Hinduísmo, existe uma Sagrada Família, composta pelo deus Shiva, sua esposa humana Pavarti e dois filhos. Também existe Krishna que é um filho adotivo de um casal humano que o salvou. Para quem quiser se entreter com uma animação muito bem feita, vale a pena assistir ao filme O Pequeno Krishna.4

A AUSÊNCIA DO PAI NA LITERATURA NÃO RELIGIOSA

Religião à parte, procurei refletir sobre o pai e o papel do pai na nossa literatura. E no começo não foi fácil. Nós temos milhares de livros sobre o romance entre um homem e uma mulher, até de dois homens ou duas mulheres, mas foi difícil pensar num único livro sobre paternidade, sobre um personagem que fosse simplesmente um pai na estória e tivesse qualquer papel (bom ou ruim). Parece que há uma desarmonia entre o desejo coletivo de ter um companheiro e, ao mesmo tempo, que esse companheiro seja um pai.

NÃO TIVE FILHOS, NÃO TRANSMITI A NENHUMA CRIATURA O LEGADO DA NOSSA MISÉRIA

A primeira lembrança foi o personagem Brás Cubas (do romance de Machado de Assis) que se lamenta: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”. Não sei se Machado de Assis está expressando o seu próprio sentimento nessa frase. O autor era descendente de negros (portanto, estigmatizado para sua sociedade) e se casou com uma mulher mais velha (portanto, também era estigmatizada pela sociedade). Nunca tiveram filhos. Mas parece que foram um casal muito apaixonado. Depois que ela morreu, Machado de Assis escreveu vários poemas de amor para ela, como, por exemplo, Carolina.5



O PAI FALECIDO

E por falar em morte, é preciso lembrar que muitos pais já estão falecidos. Quando eu estava na oitava série, resolvi contar quantos coleguinhas meus tinham pais ainda vivos na minha sala de 80 (sim, 80!) alunos. O número era inferior à metade. Com a taxa de mortes por homicídios e acidentes de trânsito brasileira, muitas crianças se tornam órfãs antes dos 14 anos. E eu não acredito que esse fosse um fenômeno só da minha cidade e da minha sala de oitava série.

Uma das maiores homenagens que eu já encontrei a um pai falecido são os poemas da poetisa Hilda Hilts no livro Exercícios (confira mais sobre este livro no blog, clicando aqui). Vale muito a pena ler. Mas é difícil segurar a emoção.  Além disso, descobri recentemente que o cantor Zé Ramalho ficou órfão aos 2 anos de idade e foi criado pelo avô. A música Avohai é uma homenagem ao avô que o criou.




O PAI ADOTIVO

Falecimento de pais nos leva a outro tema, o pai adotivo. Segundo a BBC, está para ser lançado no Brasil, o livro Nunca Pare de Caminhar da sueca Christina Rickardsson. Que nasceu no Brasil, mas foi adotada por um casal de suecos (já bem grandinha) e teve sua vida transformada por causa disso. 6 Um livro de culinária que também trata de uma adoção bem sucedida é Pois não, Chef de Marcus Samuelsson. O jovem foi adotado por um casal nórdico e aprendeu a cozinhar com sua avó adotiva, tornando-se um dos maiores chefes de cozinha do mundo. Vale lembrar que o compositor Gonzaguinha também era um filho adotivo do compositor Luiz Gonzaga.




O PAI QUE ABANDONA

É preciso lembrar que embora esperemos que os pais sempre amem seus filhos, que só os abandonem em casos extremos como a morte. Também existem os pais biológicos que rejeitam seus filhos. Nem todo pai é exemplo, como o escritor gaúcho Érico Veríssimo, cujo filho, Luiz Fernando Veríssimo, também se tornou um escritor consagrado. Muitos pais rejeitam seus filhos. E o exemplo literário mais cínico disso, para mim, é Os Miseráveis. No livro, a mãe grávida e apaixonada e abandonada na miséria por um pai que só se casaria com uma mulher da classe social dele. A mãe sofre o que nenhum ser humano deveria sofrer para dar o mínimo para a filha. E depois essa órfã recebe a ajuda de um senhor bonzinho. A ênfase é toda na bondade do senhor, mas ninguém condena o pai que abandonou. O cara é um cínico cretino. Mas, ainda sinto no romance e na leitura da sociedade, que o personagem não é condenado por isso. Parece que as pessoas interpretam que a mãe mereceu, só por ser mulher e ingênua (confira mais sobre este livro no blog, clicando aqui).

Outro livro que trata da relação entre filhos “legítimos” e “ilegítimos”, e como isso prejudica a formação de uma sociedade, como um dia, cada família paga o seu preço, é o romance da escritora chilena Isabel Allende, Casa dos Espíritos (+ no blog, clicando aqui). Outro romance sobre paternidade irresponsável e como isso tem a ver com uma sociedade de classes e desigual é A Distância entre Nós da escritora indiana Thrity Umrigar (+ no blog, clicando aqui). Será que paternidade seria um tema preferido das escritoras e não dos escritores? Existe uma série autobiográfica da escritora norte-americana Laura Ingalls, na qual ela relata a sua infância e juventude no Velho Oeste americano. A figura do pai também é muito importante como um alicerce para a família.

OS PAIS QUE NÃO SÃO COMO A GENTE GOSTARIA

Existem pais que constrangem os filhos por suas opiniões. Um exemplo engraçado pode ser lido no livro Quase Memórias do escritor Carlos Heitor Cony, quando o pai dele recebe o rei da Bélgica em visita ao Brasil. Existem pais anarquistas, como o da escritora Zélia Gattai, que relata sua infância no livro Anarquistas, Graças a Deus (+ no blog, clicando aqui). Existem pais criminosos. Para ilustrar isso, existe o livro Pablo Escobar, meu pai. Existem pais abusadores e agressores. Um livro que retrata isso é Hibisco Roxo da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (confira mais no blog Literatura Brasileira, clicando aqui). Existem pais viciados. Mas não consegui achar nenhum exemplo na literatura. Alguém conhece algum e pode me recomendar? Existem pais ausentes. Um exemplo disso foi Onassis (+ no blog, clicando aqui). Depois que seu filho Alexandre morreu, ele ficou muito arrependido por não ter dado amor e atenção ao filho.


A história de um pai agressor e violento.

O PAI QUE NÃO ABANDONA

Existem pais que nunca abandonam seus filhos, como, por exemplo, o poema Ferreira Gullar que cuidou de três filhos com esquizofrenia. Na literatura, o livro A Leste do Éden do Nobel John Steinbeck narra a história de um pai que cria dois filhos sozinho depois que sua mulher os abandona para viver na prostituição. Na vida real, o rabino Kusner (autor do livro Quando coisas ruins acontecem às pessoas boas, + no blog, clicando aqui) cuidou de seu filho com uma doença genética degenerativa até o sofrimento dele terminar, aos 14 anos. O pai do autor do livro sobre depressão O Demônio do Meio Dia, abandou a carreira de executivo para ajudar o filho a se tratar.

OS PAIS NÃO CONVENCIONAIS

Existem pais gays e transexuais. O exemplo da nossa literatura é o Laerte. Seu filho Rodrigo Coutinho também é cartunista. Parece que eles se dão muito bem. Além dele, Laerte teve outro filho (já falecido) e uma filha. Para saber mais, confira a entrevista.7 O escritor inglês Oscar Wilde foi preso e condenado por ser homossexual na Inglaterra vitoriana. Mas, ao que tudo indica, ele foi um ótimo pai, presente e que amava muito os seus filhos. Existem pais de filhos gays e transexuais. Pais que rejeitam e pais que acolhem.

Um exemplo real de pai acolhedor, liberal e sábio, para mim, é o general alemão Hammerstein-Equord. Isso ajuda a desconstruir estereótipos sobre alemães e militares. Ele teve filhos e filhas e educou todos da mesma forma. Ele foi abertamente contra o Hitler. Aliás, Hitler era um filho abandonado pelo pai e um neto de uma avó também abandonada pelo avô. Muitos de seus filhos foram comunistas e algumas de suas filhas se casaram com judeus (isso no auge do regime nazista). Ele sempre deu todo o suporte para que seus filhos se realizassem e cumprissem suam missão na Terra (+ no blog, clicando aqui).

BUSCANDO O AMOR DOS PAIS

Para quem não teve um general Hammerstein como pai e busca perdoar alguma mágoa, algum ressentimento que essa relação pai e filho deixou, recomendamos a leitura do livro Buscando o Amor dos Pais do escritor Kamino Kusumoto. O autor passou muitas experiências até conseguir perdoar e amar seus pais verdadeiramente.




Este post é uma singela homenagem a todos os pais. O meu especialmente era um grande leitor e me transmitiu muito do seu amor à leitura e aos livros. Muito obrigada!

BOA SEMANA! BOAS LEITURAS!

1 Gênesis capítulos 16 e 17. A expulsão definitiva de Agar está no capítulo 21 (do mesmo livro),versículos 9 a 21.
2 1 Samuel 8:5-6
3 No Alcorão, os capítulos são chamados suratas.

Comentários

POSTS MAIS LIDOS

A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo - Karen Horney

A SIMETRIA OCULTA DO AMOR - BERT HELLINGER

Psicologia Feminina: A Necessidade Neurótica de Amor

O Caminho dos Justos – Moshe Chaim Luzzatto

Éramos Seis, Irene Ravache, Moçambique e Angola

Daniela e os Invasores - Dinah Silveira de Queiroz

Diamante banhado em sangue, a história do Estrela do Sul

"Sei que muitas vezes eu mesmo fui um obstáculo no meu caminho, mas isso acabou"

Como acabei perdendo meu coração - Doris Lessing (Nobel de Literatura em 2007)