Diamante banhado em sangue, a história do Estrela do Sul

Os grandes diamantes recebem nomes próprios. No hall da fama das joias, existem muitas de origem brasileira. Dentre elas, está o diamante Estrela do Sul (em inglês Star of the South), encontrado na cidade mineira (que, hoje, leva o mesmo nome) em 1853. Depois de lapidado, o Estrela do Sul pesa 25,696 g, sua clareza tem classificação VS2 e é branco com refrações de rosa. É o sexto maior diamante do mundo.

Replica do Diamante Estrela do Sul
no museu Reich der Kristalle em Munique, Alemanha.

Ele já passou por diversos donos e, atualmente,o Estrela do Sul pertence à casa Cartier (Paris). Ele é peça integrante do colar cerimonial de Maharaja Sir Bhundipar Singh, considerada uma das cinco jóias mais preciosas da Cartier. Possivelmente, ele já estaria à venda, se não fosse alvo de disputa judicial [notícias sobre a venda no site da UOL].

Assim como diversas pedras preciosas, a história do Estrela do Sul é imbuída de disputas judiciais, dor e sofrimento, desde o começo. Leia abaixo descrição da sua descoberta.


I- O sonho

Casimiro Morais era um velho paralítico, de 60 anos. Morava no distrito de Joaquim Antônio, à margem do rio Bagagem. Havia chegado cheio de esperanças e não hesitara em vender os haveres que possuía nas Gerais, para tentar fortuna nos garimpos famosos. Chegou com a família e alguns escravos, logo se divulgou a notícia da fabulosa riqueza diamantífera das catas. Paralítico, os filhos dirigiam os trabalhos da mineração. Do seu leito, contudo, o velho acompanhava o desenrolar dos trabalhos e, com emoção, recebia, à tarde, o resultado do esforço do dia.

_Vocês me trazem, sempre, xibius1, meus filhos. Parece que as pedras boas se escondem de vocês!

_Não é tanto assim, meu pai. Nem é justo desdenhar. Aí está uma pedra de quatro quilates2 e outra de três e meio, além de outras, menores.

_Eu quero que me tragam é um tobó3. Um verdadeiro tobó! Que faça sensação na gente. Esses xibius, já estou acostumado a vê-los. Não fazem mossa4.

_Alguns punhados desses a que chama xibius valem bom dinheiro, replicou o filho mais velho.

_A despesa é muito grande. Essa virada dos gauchos5 consome uma fortuna. É preciso que pareça alguma coisa de sensação...

A virada dos gaúchos não ficava longe e nela trabalhavam, além dos escravos, numerosos operários de meia-praça6.

II- Um caso de amor

Para evitar dupla despesa com cozinha, da casa de Casimiro eram fornecidas as refeições aos trabalhadores. Uma escrava se incumbia de leva-las, diariamente.

Rosa era uma rosa negra, que refletia na cor a vocação para o sofrimento. Tinha encantos de transtornar o bestundo dos espadaúdos lagatões7, que manejavam as pás e as enxadas.

Rosa, também, no seu trânsito diário, via com prazer os rapazes da virada vizinha. Viu Marcos e achou que os seus músculos pareciam de aço. As veias salientes se lhe enroscavam nos braços negros, como cipós. Deitou-lhes uns olhares cúpidos, capazes de pôr em brasas um negro brioso. E Marcos achou que a escrava era bela como as rosas, esbelta, de seios robustos...

Os encontros entre ambos se repetiam, diariamente, porque Marcos, também, às mesmas horas conduzia as refeições para a sua turma.

Nas suas juras e projetos, o jovem casal sentia uma muralha que se interpunha entre eles –  a escravidão. Rosa pertencia a um senhor, Marcos, a outro.

_Sou muito infeliz! Dizia ele. Nem direito de amar assiste a um escravo.

_Não desesperes, meu amor. Deus é bom e misericordioso, mesmo aos pequeninos.

_Vamos fugir, Rosa. A mata é grande. Ninguém nos encontrará. E pertenceremos um ao outro.

_Ainda não, Marcos. Eu espero em Deus. Ele não nos abandonará.

Certo dia, Marcos veio, diretamente ao encontro da amada.

_Rosa, Deus teve misericórdia de nós. Foi a tua fé. Encontrei um diamante que nos dará a liberdade. Vê!

_Que maravilha, meu Deus! Onde o encontraste?

_Na virada do meu senhor, no meu serviço.

_Vais entregá-lo. Pertence-lhe, a ele. Que pena! Não é nosso...

_Nunca o entregarei. Pertence-me, a mim, que o achei. Este é o preço da tua liberdade.

_Se descobrem, eles te matam de pancada.

_Nada temas, que ninguém viu.

_Que havemos de fazer?

_Olha! Leva-a contigo e apresenta-a ao teu senhor. Diz-lhe que achaste no caminho, aqui, entre o cascalho... Após a chuva, foste atraída pelo brilho. Diz-lhe que entregas a pedra, mas que lhe pedes a alforria.

_E tu, continuas escravo? Nunca farei isso! Nunca!

_Não sejas teimosa, meu amor. Se obtiveres a liberdade, como é justo aconteça,  combinaremos um ponto aonde irás esperar-me. Eu fugirei. Juntos, iremos esconder a nossa felicidade, bem longe, onde não alcance a mão de meu algoz.

_Por que não fazes a mesma proposta a teu senhor? Livre, me libertarás depois.

_O teu senhor é melhor. O meu guardaria a pedra e me conservaria escravo. O meio único de solucionamento é este, que te proponho. Leva-o, meu amor! Faze o que te peço!

_Sim, farei tudo o que mandares, concordou ela. Irei esperar-te... Fugirás... Seremos um em dois... Muito longe...

Selando o pacto, os lábios polpudos se lhe colaram, num beijo longo, ardente, fusionante...

Rosa guardou o diamante no seio.

III – A liberdade

Durante alguns dias, receosa, ela escondeu-o por baixo o pilão8 emborcado.

_Se me tomam a pedra, sem me darem a liberdade?!...

Tomou atitudes misteriosas.

_Gente! Estou achando Rosa diferente!...

_É que se me meteu na cabeça que hei de encontrar um diamante deste tamanho... Eu o daria à senhora em troca da alforria.

_Se o encontrares, podes contar com a liberdade.

_A senhora sustenta o que diz?

_Sim, sustento.

Daí a três dias, Rosa apresentou a pedra à patroa.

Esta explodiu numa exclamação.

_Oh! Maravilha!

E correu a mostra-la ao marido. Casimiro, com o rebuliço, esforçava-se por levantar, esquecido da paralisia.

_Oh, meu Deus, que felicidade! Deixa-me ver! Deixa-me ver!

Ele mirava, remirava a pedra, num embevecimento quase infantil.

_Não pode haver jóia mais preciosa... É a maior do mundo. Veja! Tem cambiâncias cor-de-rosa!... Deus seja louvado! Mas... como encontraste, Rosa?

_Foi assim, senhor. Isto há muitos dias. Depois da chuva. Fui levar o almoço. Voltando, vi entre o cascalho do caminho um brilho diferente. Estava tudo molhado... Apanhei a pedra... Limpei na saia. Era grande demais, senhor, para ser um diamante. Guardei-o muitos dias debaixo do pilão... Eu não sabia que era diamante, mas tão bonita!... Se fosse, pensei, havia de pedir a liberdade. A sinhá me prometeu.

_Sim, bem a mereces e dar-te-ei, também, um rancho para morares, respondeu-lhe o velho.

A notícia do achado estourou como uma bomba. Nos garimpos só se falava na Casimira, nome espontâneo que deram à pedra. Assombravam-se com o tamanho extraordinário e seu preço era avaliado em milhões.

A imprensa do país exagerava o acontecimento, com justo motivo de orgulho.[Clique aqui para ver , na época, a notícia no jornal New York Times ].

Todos achavam que o paralítico, na sua infelicidade, bem merecia essa dádiva do céu.

_Ele é muito bondoso... comentavam.

_Muito humano com os escravos. Não viste como a Rosa já foi alforriada?

IV – As lágrimas

Aos ouvidos do dono da fazenda da virada vizinha, havia chegado a informação de que Marcos confabulava frequentemente com Rosa e que eram namorados.

_Nisso há dente de coelho!... Não duvido que aquele macaco-do-chão tenha ocultado a pedra da minha virada, para dá-la a fim de que ela obtenha a alforria...

Esta suspeita tomou vulto no âmbito do senhor, ao conhecimento do testemunho de várias pessoas sobre os encontros dos namorados.

Mandou pôr o negro no tronco. [Para saber mais sobre instrumentos de tortura para escravos no Brasil consulte o blog Passeio História].

_Agora vais contar, moleque, a história verdadeira da pedra... Tu a encontraste na minha virada, não é verdade? Deste-a à namorada, seu tratante!...

_Eu estou, senhor, ouvindo, agora, falar nisso. Rosa é quem teve a sorte de encontra-la...

_Qual, negro! Não estás falando a verdade!

_É a verdade, senhor. Nada sei.

_Vais apanhar umas chibatadas, para que te venha vontade de falar.

O chicote estralava nas costas do escravo.

_Queres falar agora?

O sangue brotou dos vergões. Marcos, porém, nada disse.

No intuito inconfessado de alimentar disputas, comentários maldosos ecoaram na maledicência do povo. O caso do negro escravo, do seu achado, da sua generosidade, foi apaixonadamente discutido.

_Deus me livre de encontrar uma pedra desse tamanho!

_Por quê?

_Traz infelicidade! Você viu? As vítimas já começaram!

Com isso, o senhor teimava em arrancar ao escravo uma palavra reveladora. As pancadas eram aplicadas diariamente. (...)

Marcos sucumbiu ao castigo, mas levou consigo o segredo. A demanda caiu, por fim, depois de muitas lágrimas.

Casimiro, em1853, comissionou a Bernardo de Melo Franco para dispor da pedra. Este vendeu-a no Rio, ao judeu H. Helphen pela quantia de trezentos e cinco contos de réis.

_Estrela do Sul! É como se chama! Exclamou o comprador. (...)

A todos Rosa sobreviveu. Os antigos senhores se condoíam dela, mas, depois de mortos, a miséria chegou tremenda, a devorar-lhe as entranhas (...)

Rosa, a rosa negra, refletia, na cor, o luto da alma. Morreu como um farrapo humano.

(Trecho extraído do livro Caiapônia: Romance da Terra e dos Homens do Brasil Central do escritor Camilo Chaves, 1884-1955).

Glossário
1xibiu: diamante muito pequeno.
2quilate: adotado como 200 mg de unidade de massa.
3tobó: diamante grande.
4mossa: marca, vestígio, impacto.
5virada dos gauchos: desvio do leito de um rio para procurar pedras preciosas.
6meia-praça: trabalhador associado que recebe metade do que for produzido.
7transtornar o bestundo dos espadaúdos lagatões: virar a cabeça dos homens.
8pilão: utensílio culinário essencial na cozinha africana.
   alforria: liberdade que se concede a um escravo.

Para aqueles que se interessam pela história da descoberta de grandes pedras preciosas, recomenda-se, também, o livro A Pérola do Nobel norte-americano John Steinbeck.  Esse livro conta a história do mexicano que encontrou a maior pérola natural da História.

Bom fim de semana! Boas leituras!


Comentários

  1. Olá! Muito obrigado pelo post! Você sabe como eu conseguiria acesso a esse livro? Atenciosamente, Otávio Alonso.

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    Respostas
    1. Rutheford, esse livro é bem raro. O meu exemplar, eu consegui de um neto do autor. Essa pessoa já faleceu. Em Ituiutaba, existe uma Biblioteca Estadual Camilo Chaves (em homenagem ao autor). Lá eles têm exemplares também.

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    2. Tem como mandar a parte do personagem Manuel cafelista ?ele foi um personagem real? Meu sobrenome é o mesmo do dele ,gostaria de saber mais

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