PRIMAVERA – SIGRID UNDSET (NOBEL em 1928)

A coleção
O livro Primavera é um livro na definição antiga: de papel, capa dura, ilustrado (à mão), 343 páginas. Ele faz parte da Coleção Prêmios Nobel de Literatura, impresso em São Paulo em setembro de 1964, portanto, há mais de meio século. Todos os livros dessa coleção têm capa dura branca com um desenho de Pablo Picasso na capa (três meninas brincando numa ciranda). A coleção publicou um livro de cada Nobel (normalmente um título menos famoso), desde o início do prêmio (1901) até a década de 60. Na lombada de cada livro, encontram-se o nome do(a) autor(a), o título e, em baixo, o ano em que o(a) autor(a) ganhou o prêmio. É uma coleção esteticamente muito bonita, ideal para decoração.


Primavera – o romance

O romance Primavera da norueguesa Sigrid Undset faz parte dessa coleção. A autora ganhou o Nobel em 1928. Mas este livro foi escrito em 1914. A estória se passa em Cristiânia (nome de Oslo, de 1624 até 1924, atual capital da Noruega). Curiosidade: o Prêmio Nobel da Paz é sempre entregue em Oslo, enquanto o de Física, Química, Medicina e Literatura é entregue em Estocolmo (capital da Suécia).

O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte, os protagonistas (crianças de lares desestruturados) são jovens e solteiros. Na segunda parte, eles já se casaram e vivem conflitos internos. Os personagens principais são os filhos da família Christiansen: Axel, Torkild e Dóris. Eles vivem em uma pequena aldeia da Noruega, sua mãe é dinamarquesa e seu pai pastor. O pai se apaixona por uma jovem da igreja, a mãe entra em depressão, se refugia no álcool e muda-se para a capital (onde recebe apoio de uma amiga viúva, a sra. Wegner). Incapaz de cuidar de todos os filhos nesse estado, ela manda o mais velho (Axel) para ser criado por um tio na Dinamarca. Depois disso, ela se torna dependente de morfina e se suicida praticamente na frente do filho do meio (Torkild).

O único consolo que Torkild tem na vida é seu amor de infância (não correspondido) por Rosa, a filha da senhora Wegner. A senhora Wegner trabalha num escritório várias horas por dia (naquela época, era o começo do trabalho das mulheres na Noruega) e se desdobra para dar tudo para a filha, mas as duas vivem num lar muito pobre, mas com muito amor (coisa que Torkild nunca teve na vida). A autora também trata da aflição das mães obrigadas a trabalhar, que deixavam seus(suas) filhos(as) sozinhos(as) num ambiente de muita violência na época, onde estupro e homicídios eram comuns.

A senhora Wegner morre. Rosa passa a morar numa casa de pensão e trabalhar num escritório completamente só e abandonada. Torkild está sempre presente e manifesta adoração pela moça, que não é correspondida. Nesse momento, o irmão mais velho, Axel, volta da Dinamarca e também se apaixona por Rosa. O romance gira em torno dos conflitos dentro dessas famílias desestruturadas. Mas ele aborda muito mais, como a questão da independência da mulher e a felicidade conjugal. O último parágrafo de cada capítulo é sempre um tratado sobre filosofia e/ou psicologia.

Alguns trechos do texto... A descrição da mãe de Rosa:

Desde as primeiras horas da manhã até noite alta, a Sra. Wegner trabalhava, arrumava a casa, preparava a comida, ia fazer compras longe, nas lojas que vendiam barato, costurava, consertava. E todos os dias, durante oito horas, lá estava no escritório. Mas havia, em sua casa e em tudo o que lhe dizia respeito, uma nota de requinte, de arte, que ela criava inteiramente com a sua riqueza de alma, com uma brilhante imaginação e o ardor de sua natureza. Ainda que a sua vida fosse uma luta incessante contra a miséria, não falava mais da pobreza que dos dias despreocupados que vivera; e, se os evocava, era para trazer à tona, com alegria e sorrisos, as ledas e felizes memórias que conservava deles. Jamais se queixava das fadigas de cada dia, mas transformava em festa toda hora de descanso que pudesse permitir-se; a menor coisa que lograsse conceder a si mesma, além do estrito necessário, aureolava-se, para ela de uma cintilação de felicidade!

Você sabe o que significa leda?

Por outro lado, a descrição da mãe de Torkild (que não precisava trabalhar, pois tinha uma pensão do marido, lembrando que o livro foi escrito em 1914):

“Em casa, Dóris e Torkild viviam num estado de completo abandono. Quando sua mãe tinha as crises e ficava acamada, inerte e muda, no quarto de estores abaixados, as crianças deviam ocupar-se de tudo e fazer o que fosse possível. O coração de Torkild ardia de raiva e de vergonha quando, a fim de adquirir o que comer para Dóris e para ele, tinha de remexer o porta-moedas da mãe, ou, se não encontrasse dinheiro, comprar a crédito nos comerciantes da rua. Além disso, sentia um medo terrível dos companheiros troçarem dele ao saber que esfregava ladrilhos na cozinha, preparava vestuário, e até, quando já não havia roupa limpa na casa, lavava. Arrebatada pelo desgosto e pelo desespero, cobria Dóris de insultos: nada era possível tirar dela; tão incapaz como a mãe para o trabalho doméstico, era-lhe indiferente aliás, ver a casa em desordem e suja.”

Você sabe o que são estores? Apesar de ser uma tradução de mais de 50 anos de um livro de mais de 100, o tema é muito atual. Existem milhares de crianças vivendo esta realidade e a linguagem é muito fácil de ser entendida. Além das palavras em questão (leda e estores), consultei o dicionário para apenas mais duas palavras: embair (enganar) e talude (rampa ou inclinação). Em todos os casos, dava para continuar a leitura e entender pelo contexto. O que me motivou foi mesmo a curiosidade.

A descrição da morte da sra. Wegner também é muito emotiva:

“Mas, para a dor de um filho que chora o pai ou a mãe não existe consolação. A mãe pode conservar até o fim de seus dias um amor vivo e inalterado pelo filho que perdeu; o coração do amante pode viver, durante toda uma longa existência, da recordação da amada que a morte roubou. Porque o amor de mãe e o amor do amante conheceram um começo; conquistaram um lugar em nossa vida; rivalizaram em força com outros sentimentos... Mas o amor dos filhos pelos pais fez parte do seu ser desde sempre; segui-o enquanto o menino crescia, sem nunca trazer ao seu espírito a ventura da novidade. Eis porque a mágoa do filho pela morte do pai ou da mãe é digna de dó e sem consolo: é uma parte da própria vida do filho que lhe é arrancada. Quando o tempo tiver cicatrizado a chaga ou um novo amor que encher o vazio do coração, não será o consolo, será o esquecimento.”

Uma das frases de Rosa ao final do livro:

“Mas acredito que, entre as mulheres, as que não são torturadas moralmente, as capazes de fazer alguma coisa na vida, são aquelas que encontraram um homem a quem tinham a certeza de poder dar o melhor de si mesmas, mas não puderam fazê-lo. Então, podem ser calmas, e dedicar-se a outras missões, pois sabem que o seu destino está decidido.”

O livro trata de muitos temas. A experiência de ler obras de mulheres mostrou que vários assuntos do universo feminino não são tratados pela literatura (predominantemente masculina). Por exemplo, antes de ler A Distância entre Nós da indiana Thrity Umrigar, eu nunca tinha lido um livro onde uma personagem fizesse um aborto. Agora, no livro Primavera, acontece um aborto espontâneo com uma das personagens e também um estupro dentro do casamento. Dois temas que eu jamais encontrei na literatura antes.

Sigrid Undset – a autora

Sigrid Undset nasceu numa aldeia na Dinarmaca em 1882, mas seu pai era um arqueólogo e intelectual norueguês. Desde pequena, ela teve contato com discussões sobre pesquisa científica e História em casa. Quando tinha apenas dois anos, sua família retornou à Noruega porque seu pai estava muito doente. Não me lembro exatamente qual doença, mas ele ficou paraplégico e vivia acamado. Quando Sigrid tinha 11 anos, o pai morreu.

Logo depois, ela começou a trabalhar. Trabalhou durante 10 anos, daí sua capacidade de descrever a solidão e os conflitos das mulheres de sua época. Sigrid queria desenvolver melhor a sua técnica para poder viver como escritora, antes de abandonar o trabalho de secretária.

Assim que ela alcançou renome, abandonou o trabalho de escritório e passou a se dedicar inteiramente à literatura. Em 1912, aos 30 anos, Sigrid viaja para Itália, onde conhece um pintor norueguês com quem se casa. Ele já tinha três filhos de um casamento anterior e um deles, tinha deficiência mental. No ano seguinte, 1913, Sigrid dá a luz ao seu primeiro filho. Em 1914, publicou o romance Primavera. Em 1914, Sigrid deu a luz a uma menina, também deficiente mental. Em 1919, seu casamento acabou, quando teve seu terceiro filho.

Ela construiu uma bela casa numa aldeia (Lillehammer, conhecida por receber os Jogos Olímpicos de Inverno de 1994), onde passou a cuidar das seis crianças, sendo duas deficientes, e da sua carreira de escritora internacionalmente consagrada. Em 1920, escreve sua obra-prima Kristin Lavransdatter (trilogia da Idade Média norueguesa, se alguém conhece alguma tradução para o português, por favor, deixe nos comentários).

Em 1924, a autora se converteu oficialmente ao catolicismo. Assim como na Nobel latino-americana, Gabriela Mistral, o catolicismo influencia toda obra de Sigrid Undset. Já no romance Primavera (escrito em 1914), um dos personagens de maior caráter e heroísmo é católico e isso é enfatizado no texto. Em 1925, ela publica outro romance histórico também entre suas obras máximas, Olav Audunsson (se alguém conhecer alguma tradução para o português, por favor, deixe nos comentários).

Sigrid Undset em 1928.

Em 1928, ela ganhou o Nobel. Por ser católica e influente, ela escreve vários artigos contra o Nazismo. Durante a guerra, a Alemanha invade a Noruega, ao que parece, o próprio governo norueguês pediu para que ela deixasse o país, porque não tinha como garantir a sua vida. Sigrid executa uma fuga desesperada sozinha com esquis pelas montanhas nevadas do país. Com ajuda, consegue chegar aos EUA em 1940. Depois da guerra, em 1945, ela retorna à Noruega, descobre que seu filho mais velho morreu combatendo o exército nazista. Ela não consegue escrever mais nada até sua morte em 1949.

Para quem quer saber mais sobre a literatura norueguesa e sobre este país incrível que é a Noruega, o blog já falou do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, relembre aqui. Como este é um livro de papel bem antigo, dentro dele, encontrei um pedaço de papel rasgado marcando página, a Oração da Família da Pastoral da Família-Catedral. Como Sigrid era católica e Primavera é um livro sobre família, finalizo o nosso encontro de hoje transcrevendo a oração:

Oração da Família
Senhor, cuida de nosso lar.
Que não se apague o fogo do amor.
Vela pela integridade de nossa família.
Estreita os laços de nosso mútuo afeto, de modo que nada o consiga violar.
Dá-nos hoje o pão de tua palavra
Dá-nos também o pão de cada dia.
Conserva-nos a alegria.
Guarda nossos filhos. Que eles tenham saúde e paz.
Fica conosco, Senhor, já que nos reunimos em teu nome.
Revela-nos tua presença, no sorriso de nossos filhos, no nosso mútuo afeto e, mais ainda, nas renúncias eu nos inspiras para a felicidade em nosso lar.
Amém.

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BOA SEMANA! BOAS LEITURAS!

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