Capoeira: quando a ética possibilita à luta virar jogo

“Que luta é essa em que os adversários sorriem e se cumprimentam, estabelecendo entre si um acordo - não dito, mas vivido - em que a ética possibilita à luta virar jogo?”
(Antônio Filogênio de Paula Júnior)


A Capoeira é um misto de jogo, dança, luta e música. A música é essencial na Capoeira, esta é a única modalidade de arte marcial em que a musicalidade se faz presente, esta dita o ritmo e estilo dos movimentos dos capoeiristas. É uma arte com histórico de lutas pela emancipação negra. A sua prática foi perseguida tanto na Monarquia quanto no inicio da República. Uma vez livre, porém, hoje se encontra espalhada no mundo sendo uma das principais formas de expansão da língua portuguesa. 


"Negroes fighting, Brazil" (1824). Pintura do inglês Augustus Earle. Gravura mostrando a repressão policial aos capoeiristas, uma cena comum no Rio de Janeira durante o século 19.1


Segundo a historiadora Letícia Vidor de Sousa Reis, a capoeira parece remontar aos quilombos da época colonial, sendo utilizada como defesa dos escravos em suas fugas , visto que não possuíam armas. 2 A música e dança na capoeira teriam surgido como uma forma de ludibriar os captores. Na condição desumana de escravos, desarmados, usaram o próprio corpo como arma e, nesse contexto, havia uma necessidade de camuflar a luta, o que fizeram com músicas e danças.

A prática da capoeira foi perseguida durante todo o período da Monarquia, mas passa a ser considerada um crime somente a partir de 1890 com o Decreto Nº 847. 3 Apesar da forte repressão, a Capoeira sobreviveu à marginalidade e foi considerada legal na década de 1930. Esse processo contou com o apoio fundamental dos intelectuais modernistas que passaram a discutir a capoeira e exaltá-la como um esporte genuinamente nacional. Os responsáveis por tirar a capoeira da marginalidade e adaptá-la os tempos atuais, no entanto, foram os grandes mestres de capoeira Mestre Bimba e Mestre Pastinha. 4


Leia a seguir um trecho do Decreto Nº 847.
O Capitulo XIII “DOS VADIOS E DA CAPOEIRA” proibia a prática da capoeira sob a pena de prisão.

CAPITULO XIII
DOS VADIOS E CAPOEIRAS
(...)
Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
    Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.
    Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.
    Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
    Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400.
    Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.
    Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes.
(...)

Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado, 1900-1974) foi um grande lutador e educador. Ele inventou a Capoeira Regional fundindo a Capoeira Tradicional ao Batuque e elaborou uma rígida metodologia de ensino. Em 1932 ele tira a capoeira das ruas, com a criação de sua primeira academia (o Centro de Cultura Física e Luta Regional). Havia nele uma grande preocupação em transformar a imagem do capoeira vadio e desordeiro em saudável e disciplinado.  Estas são algumas das regras que ele empunhava os seus discípulos:

– Não beber, e não fumar. Pois os mesmos alteravam o desempenho e a consciência da capoeira.
– Evitar demonstrações de todas as técnicas, pois a surpresa é a principal arma dessa arte.
– Praticar os fundamentos todos os dias.
– Não dispersar durante as aulas.
– Manter o corpo relaxado e o mais próximo do seu adversário possível, pois dessa forma o capoeira desenvolveria mais.


Em 1941, Mestre Pastinha (Vicente Joaquim Ferreira Pastinha 1889 - 1981) funda o Centro Esportivo de Capoeira Angola, onde passa a ensinar através de métodos próprios. Pastinha condenava a violência e valorizava o lado lúdico da capoeira. Em 1964 publica o livro Capoeira Angola com a intenção de apresentar uma visão panorâmica acerca das possibilidades que a Capoeira oferece como meio de defesa pessoal e desenvolvimento físico, neste ele afirma:

“(...) é muito raro sair acidentado algum capoeirista em consequência da prática da Capoeira em demonstrações esportivas, porém, tratando-se de enfrentar um inimigo, a Capoeira, não é dotada somente de grande poder agressivo, mas possui uma qualidade que a torna mais perigosa - é extremamente maliciosa.
O capoeirista lança mão de inúmeros artifícios para enganar e distrair o adversário. Finge que se retira e volta rapidamente. Pula para um lado e para o outro. Deita-se e levanta-se. Avança e recua. Finge que não está vendo o adversário para atraí-lo. Gira para todos os lados e se contorce numa "ginga" maliciosa e desconcertante.
Não tem pressa em aplicar o golpe, ele será desferido quando as probabilidades de falhar sejam as mínimas possíveis.
O capoeirista sabe aproveitar de tudo o que o ambiente lhe pode proporcionar.”
(Em "Capoeira Angola", de Mestre Pastinha)


A Capoeira é uma expressão máxima da história da resistência negra no Brasil, durante e após a escravidão. Reconhecendo isso, em 2014, a Unesco reconhece a Roda de Capoeira como Patrimônio Imaterial da Humanidade. Segundo Marlova J. Noleto, Representante Adjunta do escritório da Unesco no Brasil  “o título assegura maior visibilidade à capoeira, aumenta o grau de conscientização sobre sua importância e propicia formas de diálogo que respeitem a diversidade cultural brasileira. Esperamos que o título ajude não só na promoção da Capoeira, mas, sobretudo, estimule a adoção de políticas públicas de salvaguarda e sustentabilidade deste importante patrimônio cultural por parte dos governos e da sociedade civil organizada”.5

Roda de Capoeira ilustrada por Carybé. 6


O papel da Capoeira vai muito além do desenvolvimento físico e defesa pessoal. A vivência da capoeira mudou a minha forma de olhar as coisas, assim como muitas vezes durante o jogo, literalmente, virei de pernas pra o ar e pude ver o mundo sob um ângulo diferente. Foi muito importante na minha formação pessoal, pelas pessoas maravilhosas que eu conheci e que me ensinaram a rever meus conceitos/preconceitos, a ter mais empatia pelo próximo e a estudar história do Brasil com mais criticidade.
  

Referências

1.        ‘Negroes fighting, Brazil’ by Augustus Earle (1824). at <http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/detailsKeyword.php?keyword=NW0171&recordCount=2&theRecord=0>
2.        Reis, L. V. de S. & Vidor, E. Capoeira Uma herança cultural afro-brasileira. (SELO NEGRO, 2013).
3.        DECRETO 847, 1890. Câmara dos Deputados at <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>
4.        A capoeira na história. revista de história (2008). at <http://rhbn.com.br/secao/conteudo-complementar/a-capoeira-na-historia>
5.        Roda de Capoeira - UNESCO. (2014). at <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/capoeira_becomes_intagible_cultural_heritage_of_humanity/>
6.        Carybé. Pintura Roda de Capoeira. at <http://www.tntarte.com.br/tnt/scripts/exposicoes/2008_junho/2008_junho.asp>

(Este texto é de autoria e responsabilidade do blog Literatura Brasileira)

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