INQUISIÇÃO NO BRASIL E NO MÉXICO: DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS
No post anterior, acompanhamos a vida da freira mexicana Juana Inés que
foi perseguida pela Inquisição por discordar publicamente de um dos sermões do
padre Antônio Vieira. Curiosamente o próprio padre Antônio Vieira também foi
julgado pela Inquisição e também passou muito perto de arder numa fogueira. No
caso dele, foi porque padre Antônio Vieira defendia incessantemente o direito
dos índios brasileiros, combatendo sua escravidão e pregando o cristianismo
para eles. Além disso, padre Antônio Vieira se manifestou publicamente a favor
dos judeus e de que a Corte Portuguesa não fizesse distinção entre
cristãos-novos (judeus convertidos à força ao cristianismo) e cristãos-velhos.
Mas, como o mesmo movimento
chamado “Inquisição” pode ter perseguido os dois lados de uma discussão
teológica? De onde surgiu esse movimento? Ele era igual no Brasil e no México?
Era do jeito que a série da Netflix mostra? Para responder essas questões,
estou me baseando nas Revistas de História da Biblioteca Nacional, nº 73
(outubro de 2011) e 81 (junho de 2012), respectivamente intituladas Inquisição à Brasileira e Jesuítas – Por dentro da Ordem.
Revista número 73 (outubro de 2011). |
POR QUE SURGIU A INQUISIÇÃO?
Martinho Lutero criou o
Protestantismo, um movimento grande que questionava e rompia com dogmas da
Igreja Católica Romana. Esse movimento ficou conhecido como Reforma. Em
resposta, a Igreja criou a Contra Reforma, para purificar/expurgar práticas não
alinhadas com a doutrina católica de dentro das suas igrejas. A Inquisição
Moderna era o instrumento formal que permitiria essa limpeza. Antes disso,
houve a Inquisição Medieval, que era um pouco menos organizada.
EXISTIU UMA ÚNICA INQUISIÇÃO MODERNA?
Não. Na verdade houve/há três
Inquisições Modernas: a portuguesa, a espanhola e a romana. A portuguesa surgiu
com D. João III em 1536, vigorou em todas as colônias portuguesas (inclusive o
Brasil) e foi extinta em 1821. A espanhola foi fundada pela casa de Castela e
Leão em 1478, atuou na Espanha e suas colônias da América Latina (inclusive o
México), nos Países Baixos e nas regiões da Itália sob o domínio da Coroa
Espanhola. Foi oficialmente extinta em 1834. A romana surgiu em 1542 com o papa
Paulo III e, bem,... Ela existe até hoje. Mas, em 1965, passou a adotar o nome
de Doutrina da Fé e mudou seus propósitos e práticas (entre eles, abandando
torturas e execuções).
A principal diferença entre as
três, é que a portuguesa não teve uma antecedente medieval. Ela foi criada
praticamente “do zero”, enquanto as outras já herdaram as práticas e
procedimentos medievais, entre elas, as abomináveis torturas e execuções sob
tortura.
QUAIS ERAM OS PRINCIPAIS CRIMES?
Blasfêmia, bigamia, curandeirismo,
feitiçaria, heresia, solicitação (quando um padre assediava sexualmente um fiel
durante a confissão) e sodomia (práticas homossexuais).
COMO FUNCIONAVA UM PROCESSO DE INQUISIÇÃO?
Um processo de Inquisição, de
fato, era um processo, quase nos moldes de um processo dos dias atuais. Ele
ocupava dezenas de funcionários, semelhante aos funcionários públicos dos dias
atuais. Aliás, princípios como “o réu é sempre inocente até se prove o
contrário” surgiram desses processos.
Entre os funcionários envolvidos
havia: inquisitor-geral, inquisitor, visitador, deputado, promotor,
notário, procurador, qualificador, comissário, visitador das naus do
estrangeiros, meirinho, homens de
meirinho, alcaide, guarda, porteiro,
solicitador, dispenseiro, médico, cirurgião e barbeiro e o familiar.
Apesar de algumas tentativas de
se montar um Tribunal do Santo Ofício no Brasil, em Salvador, nunca houve um
tribunal no Brasil. Os acusados eram levados para Portugal e lá julgados. Ao
contrário do México, onde havia um Tribunal do Santo Ofício na cidade do
México. Também havia tribunais no Peru, na Colômbia e nas Índias portuguesas.
No caso da História do Brasil,
a figura do visitador ganha relevância, porque ele era a pessoa (ou o grupo de
pessoas) responsável por viajar e averiguar se os preceitos da fé católica
estavam sendo cumpridos na colônia. Por isso, estudam-se as visitas da
Inquisição. Apesar de terem sido amedrontadoras para a sociedade da época,
deve-se pensar que eram visitas, por tanto, em algum momento, eles foram
embora. Ao contrário do México, Peru e Colômbia, onde a perseguição era
incessante.
Dois personagens que eu acho
particularmente odiosos eram o familiar e o médico. O familiar era uma pessoa
indicada (um protegido), geralmente ele não era religioso, que identificava e
delatava as heresias. O familiar devia provocar a confissão por meio de pressão
psicológica e até mesmo do emprego de força física. Será que algumas atuações
da polícia nos dias atuais não seria uma herança do que foi um familiar na
Inquisição? Familiar era um título que conferia enorme prestígio ao seu
possuidor. O médico acompanhava a tortura e dizia até que ponto o réu era capaz
de suportar.
QUAIS AS ETAPAS DE UM PROCESSO DA
INQUISIÇÃO?
O processo de Inquisição se
constituía nas seguintes fases: denúncia, instauração do processo, prisão, sequestro dos bens (muitas pessoas se aproveitaram e foram beneficiadas com essa fase),
inquirição de testemunhas, inquirição dos réus, preparação para a tortura
(quando se recusava a assumir a culpa, o réu era obrigado a assinar um termo em
que tomava conhecimento dos castigos que iria sofrer), exame de consciência e
tortura (eu me recuso a escrever sobre as formas de tortura usuais na época),
mesa de despacho, sentença e auto de fé. O Auto de Fé consistia na leitura e na
execução da sentença, resultando em morte na fogueira.
Imagem retirada do PixaBay. Para lembrar que a etapa do processo chamada Auto de Fé matava as vítimas queimadas em uma fogueira. |
TEVE CAÇA ÀS BRUXAS NO BRASIL?
Na verdade, não. Na série Juana
Inés, mostram uma índia sendo torturada por feitiçaria. Não posso dizer ao
certo como foi no México. Também houve perseguição no Brasil aos índios que não
quiseram se converter. Nesse caso, o crime era categorizado como “bruxaria”.
Não existem números certos, mas acredita-se que esses fossem menos de 2% dos
casos. A caça às bruxas, como é mostrada nos filmes, é um fenômeno protestante.
O protestantismo também perseguiu seus “hereges” num movimento similar ao da
Inquisição.
TEVE, SIM, CAÇA AOS JUDEUS E AOS
HOMOSSEXUAIS
No Brasil, a maioria absoluta
das acusações era por judaísmo. Quase toda população não-nativa do Brasil era
de origem judaica, os chamados cristãos-novos. Alguns realmente se converteram
ao cristianismo, alguns mantiveram suas práticas judaicas em segredo (recusando
a conversão) e muitos (talvez maioria), devido à falta padres e orientação
religiosa das duas vertentes, misturaram as duas crenças num sincretismo
religioso bem brasileiro. Muito mais do que a questão religiosa, se um
cristão-novo ou uma cristã-nova tivesse bens, fosse ambicioso, tivesse uma
imagem pública, obviamente, ele ou ela teria contestadores e inimigos
políticos. A Inquisição, do jeito que ela foi desenhada, dava força para esses
opositores denunciarem e roubarem os bens do acusado. Talvez essa seja a origem
do duplo pensar do brasileiro, que prega uma coisa e faz outra.
No entanto, um dos casos mais
bem documentados e mais dramáticos de perseguição a uma família judia,
aconteceu no México e seu protagonista chama-se Luis de Carvajal y de la Cueva.
Ele fez um diário narrando as torturas que ele e seus familiares sofreram e
cada dia de cela. Esse diário havia se perdido. Em junho de 2017, ele foi
encontrado. A BBC
fez uma reportagem especial narrando o fato.
Práticas homossexuais (tanto
entre homens como entre mulheres) foram a segunda maior causa de denúncia.
Existe um relato de um padre que fez sexo com uma menina de 6 anos e o
inquisitor pergunta se a penetração foi anal ou não. Para mentalidade da época,
não havia nenhum problema se um homem adulto fizesse sexo com uma criança. Mas o
sêmen era sagrado, então ele tinha que ser depositado na vagina da criança.
Imagem retirada do PixaBay. Para lembrar que Inquisição também matou milhares de homossexuais. |
O QUE FICOU DA INQUISIÇÃO? POR QUE É
IMPORTANTE ESTUDAR A INQUISIÇÃO?
Muita coisa (inclusive uma parte
boa) ficou da Inquisição, como a ideia de processo e de advogado de defesa.
Mas, no meu ponto de vista, a herança é mais negativa do que positiva. Quando a
polícia espanca e mata um pobre, ela está repetindo o que a Inquisição fazia.
Expressões como “judiar” (agir como um judeu), “a carapuça serviu” e “ficar a
ver navios” vieram dessa época e ficaram na nossa língua para nos lembrar que o
passado pode estar mais próximo do que a gente imagina.
Até hoje, existem autores que
pregam que a Inquisição foi boa. Na minha opinião, ela não foi. Porque ela foi
um processo que permitia ao Estado (fundido com a Igreja) torturar e matar
pessoas que divergissem da opinião geral. Depois que a Alemanha nazista matou
seis milhões de pessoas, parece que gente precisa de um número grande de mortos
para dizer que um crime foi realmente um crime. A Inquisição não matou tanta
gente assim, porque não tinha tanta gente assim no mundo e eles não tinham
tecnologia para matar tanta gente naquela época. Só por isso. No Brasil, por
exemplo, a Inquisição deve ter matado cerca de vinte mil pessoas. Elas eram
pessoas, com família, amores, desamores. Ninguém merece ser morto pelo Estado ou
pela Igreja ou pelos dois fundidos num só. Nenhuma pessoa merece morrer nas
mãos do Estado. O Estado não pode ter poder de dizer o que é certo e o que é
errado para a consciência e a fé das pessoas.
O estudo de História,
principalmente dessas páginas mais sangrentas, é necessário. Ele deveria nos
ensinar a concertar o presente, a partir dos erros do passado, nos tornando
mais tolerantes e abertos e, por fim, livres.
Muito obrigada a todos e todas
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