REINALDO DE AZEVEDO NÃO É HANNAH ARENDT
Acabo de ler o livro As Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e
Totalitarismo da filósofa Hannah Arendt. Durante conversas com
amigos, parece que não ficou clara a relação entre os tópicos: antissemitismo,
imperialismo e totalitarismo nos posts.
Isso foi uma limitação do blog. A
autora do livro deixa claríssima a relação entre os eventos. A perseguição a
grupos organizados (no caso, judeus) e o imperialismo formaram o berço para que
regimes totalitários possam se instaurar.
IMPERIALISMO
A leitura deste livro me ensinou o que realmente foi (ou é) o
imperialismo. Durante as aulas de História na escola, esse tema virava
anglofobia (“Os EUA são imperialistas!”, “A Inglaterra é imperialista!”), mas
ninguém explicava, de fato, o conceito.
Segundo Hannah Arendt, o imperialismo é o desejo
desenfreado pela expansão só pela expansão, sem necessariamente uma vantagem
lucrativa. Nesse ponto, o imperialismo difere da colonização e da
pirataria. A autora cita uma frase de Cecil Rhodes, magnata fundador da De Beers Mining Company (até hoje uma
das maiores empresas de diamantes do mundo) dizendo que ele anexaria um
planeta, se fosse possível.
ÁFRICA DO SUL
Hannah Arendt também faz uma análise profunda da formação da
África do Sul (país onde Cecil Rhodes começou) e explica, a partir da
perspectiva dos boêres [1], as origens do racismo e do subdesenvolvimento
sul-africano. Em linhas gerais, a visão da autora é que os boêres (primeiros
brancos da região) foram adquirindo hábitos tribais e se sobrepondo como uma
tribo mais forte.
Chegou a revolução industrial e o capitalismo, mas esses
brancos não quiseram (ou não conseguiram) se adaptar a um regime de competição,
eles preferiram usar sua força para garantir privilégios de classe, baseados na raça. Daí surgiu o racismo como ideologia. É válido lembrar que, embora
existisse tráfico de escravos em períodos muito anteriores, o racismo é uma
invenção do século XX. Antes era simplesmente natural vender outras pessoas
pela lei da força e ninguém precisava de uma ideologia que justificasse isso por
meio de “uma raça inferior”.
Além disso, eles afastaram as empresas mais competitivas do
capitalismo com seus privilégios de classe . As empresas eram obrigadas, por lei, a pagar um salário 20 vezes maior a funcionários brancos e só contratar
brancos, o que era contra-produtivo. Só ficaram no país setores extrativistas
que podiam sustentar esses privilégios de classe, como as mineradoras (qualquer
semelhança com o Brasil é mera coincidência, risos).
Cabe uma crítica ao livro Chutando
a Escada [2] , segundo o autor, ele não pôde analisar um país
subdesenvolvido porque não falava o idioma desses países, mas o livro foi
escrito em inglês e a África do Sul fala inglês. Em contra partida, a análise
da Hannah Arendt das razões do subdesenvolvimento da África do Sul é muito boa.
Uma das coisas que me surpreenderam é que a autora prova que não se pode ser
racista e nacionalista ao mesmo tempo, pelo menos, não sem entrar em contradição.
TOTALITARISMO
Também foi com a leitura deste livro que eu pude aprender o
verdadeiro significado do termo totalitarismo. Hannah Arendt conheceu dois
regimes totalitários: o nazismo e o stalinismo. A autora se declara, por razões
culturais, incapaz de analisar a Revolução Chinesa.
É interessante como temos uma visão distorcida dos fatos
por estarem próximos de nós. Fui a uma festa em São Paulo, num círculo de
pessoas com alta instrução, e alguém disse algo como: “Mao Tse-Tung (líder da
Revolução Chinesa) foi um monstro, já o Stalin foi um ditador, mas nem matou
tanta gente assim.”. Segundo Hannah Arendt, Mao matou 3% do que Stalin matou,
ponderando pela população dos respectivos países.
O totalitarismo é um governo pelo terror que visa à completa
destruição da individualidade humana. Nesse ponto, ele difere do nepotismo, da
ditadura e da tirania. Numa ditadura, nós podemos ser contra o ditador e,
possivelmente, mata-lo ou morrer tentando. Num regime totalitário, nós (os
cidadãos perfeitamente uniformes) não teremos direito a existir, nossa
existência pode ser simplesmente apagada do dia para noite (assim como a de
pessoas que nos conheceram), nós somos todos supérfluos, não temos vínculos e o
governo decide pelo extermínio de grupos aleatórios (completamente independe
das ações dessas pessoas), gerando o terror. Os regimes
totalitários não querem criar comunistas convictos ou nazistas convictos, eles
querem formar pessoas completamente desvinculadas umas das outras que são
incapazes de abraçar qualquer crença.
HOMOSSEXUAIS DO PARTIDO NAZISTA
Por exemplo, existiam muitos gays assumidos no Partido Nazista, desde a sua fundação. A SS e a SA
eram grupos paramilitares de elite. Por serem militares, eu esperava que o
processo para entrada nesses grupos envolvesse algum teste físico (corrida,
natação, etc.) ou alguma prova de conhecimento militar. Na verdade, os membros
eram escolhidos por foto. O único critério exigido eram terem mais de 1,80m e serem loiros.
Isso parece mais uma agência de modelos dos dias atuais.
Entre os maiores gays assumidos do nazismo estavam Ernst Rhöm
e Edmund Heines [3]. Segundo a versão da Wikipédia, ambos foram
assassinados mais tarde por serem gays (Heines inclusive foi morto na cama com
um belo agente da SA).
Ernst Rhöm, oficial nazista, homossexual assumido. |
Na visão de Arendt, eles não foram mortos por serem gays,
isso sempre foi público e faziam vários anos que a carreira deles estava
progredindo no Partido. Eles foram mortos porque Hitler percebeu que o grupo
dos homossexuais (assim como os judeus) era unido. Ele não podia jogar um gay
contra o outro e mandar um matar o outro, quando quisesse. Lealdade com
qualquer pessoa, família, grupo ou classe é uma ameaça para regimes
totalitários.
É muito preocupante lembrar que estamos numa sociedade onde
as pessoas estão solitárias, perdendo vínculos sociais e ficando, cada vez
mais, nas redes sociais (onde os serviços de inteligência, braço direito do
totalitarismo, podem saber todos os relacionamentos de uma pessoa), i.e.,
vivendo em suas bolhas. Veja o vídeo abaixo:
Hannah Arendt chama as bolhas de "indivíduos atomizados" e,
define isso como o primeiro passo na direção do o totalitarismo. Desse ponto de
vista, o ato mais reacionário que pode ser feito na luta pela liberdade
individual é ter contato (pessoalmente) com as pessoas e ir criando vínculos
com elas, principalmente, aquelas que são diferentes de nós. Na época que
as famílias eram numerosas, isso era quase natural, pois cada irmão tem sua
personalidade. Nos dias atuais, é fundamental retornar a esse contato humano de
afeto. Cumprimentar o(a) vizinho(a), nunca foi tão importante como agora.
REINALDO DE AZEVEDO NÃO É HANNAH ARENDT
Eu entrei no site
da Revista Veja e busquei pelo termo "Hannah Arendt". Aparecem diversas
citações, principalmente do Reinaldo de Azevedo. O que eu considero um fato
lamentável, pois muitas pessoas não gostam desse autor e podem deixar de ler
Hannah Arendt por causa dele. Reinaldo de Azevedo não é Hannah Arendt!
Ele pode citá-la e, na minha opinião pessoal, ele cita mal
e em momentos inadequados. Não dá para saber se ele realmente leu algum dos livros dela pelo que
ele comenta. Por exemplo, no texto Barusco
em Brasília – um Relato sobre a Banalidade da Roubalheira [4], o
autor faz um resumo muito simplificado sobre o livro Eichmann em Jerusalém. Qualquer pessoas que leu o resumo do livro
ou assistiu o filme consegue comentar isso. Confira o que o nosso blog escreveu sobre Eichmann em Jerusalém [5,6].
Quando ele vai fazer algum paralelo com a realidade
brasileira, ele escreve “e aqui sou eu, não Hannah Arendt”. Na minha opinião,
ele mancha o nome da filósofa, usando-o no título, para escrever opiniões
pessoais.
O texto A Hannah Arendt
dos Quadrúpedes[7] é ainda pior. O autor compara Lula a Hannah
Arendt (“Oi?”). Apesar do título, o nome da filósofa só aparece uma vez na
expressão “como uma Arendt dos
quadrúpedes, Lula..” Na minha opinião isso transmite pouco conhecimento
sobre a filósofa e compromete a imagem da mesma para o público brasileiro,
pouco leitor.
Só um leitor se indigna com o fato:
“Não entendi a referência dele à Hannah Arendt, de todos os “pensadores”
é a única que não se enquadra nas modernidades pedagógicas da esquerda,
considerada como conservadora”.
Até aí perfeito. Partilhamos do mesmo entendimento. Mas a
pessoa continua discutindo sobre educação, como se Hannah Arendt fosse uma
psicopedagoga.
“[ para os modernosos
experimentais] e defensora da autoridade, da hierarquia na escola, onde a
criança precisa sim ser conduzida por adultos responsáveis e não deixadas a seu
bel-prazer.”
E o texto original vai longe. Até compara Hannah Arendt com
Paulo Freire... Até onde eu sei, Hannah Arendt jamais escreveu nada sobre
educação ou psicologia. Essa suposição pode ser unicamente devido ao fato de
Hannah Arendt ser mulher, afinal, ele pode achar que mulheres não escrevem (e
bem) sobre política ou confundiu com Melaine Klein. O único fato que
as duas autoras têm em comum é serem mulheres e terem alemão como primeira
língua.
Muito obrigada a todos vocês que acompanham o nosso
trabalho. E nos enriquecem com críticas, sugestões e comentários. Por favor,
fiquem à vontade. Esse espaço é de vocês!
Boa semana! Boas leituras!
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