OS SEGREDOS DO DESENVOLVIMENTO - CRÍTICAS AO LIVRO CHUTANDO A ESCADA (PARTE II)
Retomando o tópico de duas semanas...O livro Chutando a Escada (Kicking away the ladder, no original) foi muito popular na década
do seu lançamento (2002), tanto junto ao público leigo, quanto entre os
pensadores econômicos e tomadores de decisão. O livro tem o grande mérito de
propor uma abordagem histórica para entender o desenvolvimento econômico dos
países, assim, buscando entender porque alguns lugares se desenvolveram e
outros não. Essa abordagem era pouco usual entre pensadores econômicos. Além
disso, o autor escreveu numa linguagem simples permitindo que pessoas sem
formação na área possam ler o livro e tirar suas próprias conclusões.
Entre as críticas, está o fato que o autor
investiga a história de poucos países. Ele explana sobre alguns pontos históricos
pouco conhecidos de alguns países desenvolvidos hoje, mas não existe o
contraponto da análise de um país em desenvolvimento no mesmo período. O autor
alega que enfrentou limitações linguísticas e, por isso, não pôde analisar um país
em desenvolvimento. Segundo a ONU, existem 134 países em desenvolvimento no
mundo, dos quais, 18 têm inglês como língua oficial (entre eles, África do Sul
e Nigéria). O autor escreveu o livro em inglês, alegar que não pôde analisar nenhum
país por causa do idioma parece uma desculpa fraca.
O autor ataca algumas instituições consideradas “sagradas”
hoje em dia, mas, que os países hoje desenvolvidos não adotaram quando ainda
estavam se desenvolvendo. Entre eles, destacam-se:
Democracia
O autor entende democracia única e exclusivamente
como o direito ao voto universal. Esse assunto foge da discussão, mas existem
várias discussões filosóficas sobre o tema, um regime não é 100% democrático só
porque tem o voto universal. Ao contrário, outro regime pode ter um alto grau
democrático e não dar o direito ao voto universal.
O autor argumenta que os países em
desenvolvimento foram forçados a aderir ao voto universal antes de estarem
preparados para isso. E por “preparado” o autor entende como ter um PIB per
capita equivalente ao dos PADs (Países Atualmente Desenvolvidos) quando eles aderiram ao voto universal. O autor
compila os dados que ele possui na Tabela 3.2 da página 135. Segundo ela, o Brasil deu o voto universal, pela
primeira vez, a todos os brasileiros em 1977 (essa data é baseada no quê?), nessa época, o Brasil
tinha um PIB per capita de 4.613 dólares. Esse PIB per capita era maior do que
o da Áustria, Alemanha, Itália, Japão, Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia,
França e Holanda. Portanto, se PIB per capita for um pré-requisito para dizer
que um país deve adotar o sufrágio universal, o Brasil estava mais preparado
que todos os países mencionados.
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Foto da Tabela 3.2 apontando o PIB per capita brasileiro possivelmente errado,
embora não exista um dado oficial, e a data da instauração do voto universal como 1977. |
Mas afinal? O que é o PIB per capita?
Numa definição simples, é toda a riqueza de um
país gerada naquele ano, dividida pela população daquele ano. Ele assume que a
riqueza é igualmente distribuída entre todos da nação, desprezando fenômenos
como a concentração de renda. Já foi amplamente discutido e aceito que esse é
um indicador muito limitado para demonstrar a riqueza de um país. [2]
Impostos
Voltando ao autor, ele demonstra um
desconhecimento das diferenças entre a colonização das colônias britânicas
(como os EUA) e as dos demais países. Num determinado momento (p. 171-174), ele
fala das dificuldades que os EUA (e demais países desenvolvidos) enfrentaram
para impor o conceito de imposto e, principalmente, de imposto de renda.
Os EUA eram uma colônia que praticamente não
pagavam impostos à Inglaterra. Eles viveram praticamente 300 anos sem pagar
nenhum imposto. As primeiras taxas vieram para financiar a Guerra de Secessão
e, de fato, eles tiveram que criar um sistema tributário praticamente do zero.
Ao contrário, os países latino-americanos, colônias da Espanha e de Portugal
sempre pagaram impostos. Lembrando que Tiradentes, em 1792, se revoltou contra
o quinto (isto é, imposto de renda de 20%). Enquanto os brasileiros pagavam
20%, os norte-americanos pagavam 0%.
Com independência, não houve uma alteração
significativa no regime tributário ou na alíquota de impostos. Os novos
governos simplesmente herdaram uma estrutura consolidada. O autor ignora isso e
assume que todos os países em desenvolvimento não tinham impostos, assim como
os EUA não tinha.
Propriedade Privada
O autor argumenta que um país em desenvolvimento
não precisaria garantir o direito de propriedade privada. Um contra-argumento seria
expor que a Ditadura brasileira, usando essa lógica que os fins justificam os
meios, desrespeitou o direito de propriedade privada, concedendo grandes áreas
de terra na região Amazônica a multinacionais (desrespeitando o direito de
propriedade dos locais). Isso não gerou nenhum desenvolvimento econômico na
região, mas gerou um contexto de violência histórico.
Para dar um exemplo do próprio autor, ele cita
que o governo francês violou o direito de propriedade. O autor não especifica
ao que ele está referindo exatamente. Penso que ele se refere à estatização da
Renault durante o governo Vichy [3], um governo fantoche do Partido
Nazista. Se esse for o caso, a Renault estatal nunca foi uma referência em
produtividade e lucratividade. Os herdeiros da família Renault recorrem até
hoje nos tribunais franceses para ter a empresa do seu avô de volta. [6]
Além da questão ética do autor estar implicitamente apoiando o nazismo, ainda
fica um pensamento um pouco irônico... “Deve ser por isso que a Renault é uma
marca tão boa e tão bem administrada.”
Trabalho infantil
A questão mais preocupante de todas, foi o
bem-estar social, leis trabalhistas e o trabalho infantil. É tão preocupante
que o autor “esqueceu” de mencionar na introdução. Eu tenho medo de que as
pessoas usem (mesmo não sendo a intenção do autor) esse texto para justificar
não combater o trabalho infantil e tirar leis trabalhistas, pois, isso
supostamente ajudou outros países a se desenvolverem.
O autor, que desde o começo do livro fala que
quer interpretar de acordo com a História, esquece o contexto histórico no caso
das leis de regulamentação do trabalho infantil. A Inglaterra permitia, sim,
que crianças de oito ano trabalhassem em fábricas por 12-14 horas no século
XIX. Mas, e o autor esquece o detalhe histórico-tecnológico da época, não havia
método anticoncepcional. Havia mais crianças do que adultos em qualquer lugar
do mundo, não importando o grau de desenvolvimento.
Hoje, a idade média do brasileiro é 31 anos de
idade. Só 15% dos brasileiros têm menos de 14 anos, desde grupo 3 em cada 4 são
pobres (11,25% da população brasileira). Isso significa em que, em 20 anos, a
maioria dos brasileiros vai ter mais de 50 anos e 15% vai ter cerca de 30 anos,
ou seja, vão estar no auge da sua produtividade. O rendimento desses 15% vai
ter que compensar as limitações produtivas dos outros 85%. Essa não é uma conta
fácil de fechar em nenhum lugar do mundo. Essa realidade (de poucos filhos por
mulher) é comum à maioria dos países em desenvolvimento, até mesmo dos países
islâmicos, ao contrário, do que a maioria imagina. Basta checar as estatísticas
do Banco Mundial [4]. Na de reverter esse cenário, a China aboliu a
lei do filho único. [7]
Na minha opinião, a única chance que o Brasil tem
é investir em alta qualificação dessa geração para que o trabalho dela seja tão
lucrativo que pague os demais custos. E isso deve ser feito com urgência. Os
países em desenvolvimento estão sendo muito menos cobrados a acabar com o
trabalho infantil e investir em educação do que deveriam. A situação é emergencial.
Não adianta argumentar que há dois séculos a Inglaterra não fazia isso, o
contexto histórico era outro.
Considerações finais
O livro termina afirmando que a maioria dos
países em desenvolvimento diminui o crescimento desde que passou a adotar políticas
liberais. Lembrando que, nas afirmações dele, esse é o caso brasileiro e que é
contestável se o Brasil, de fato, adotou medidas liberais. Outro, porém, é que
nossos vizinhos (Chile, Peru e Colômbia) adotaram políticas liberais durante o
período e, de fato, cresceram. O autor menciona o Chile entre as exceções e
depois “esquece” de justificar o Chile. Ele simplesmente muda de assunto.
Recomendo o texto Dez Motivos que provam porque
o Chile é um Brasil que deu certo. [5]
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Crescimento do PIB chileno. |
Rafael Correa, presidente do Equador desde 2007, é seguidor do autor. No outro extremo econômico, o Chile adotou uma política econômica liberal no mesmo período, presidido por Sebastián Piñera (2006-2014). O Brasil adotou uma política econômica indefinida, talvez mais próxima da pregada pelo autor, com o presidente Lula (2003-2011) e a presidente Dilma (2011-2017). Agora veja os gráficos do crescimento do PIB dos três países no período. Todos cresceram na época “próspera” e, em seguida, todos caíram, independentemente de terem políticas econômicas opostas.
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Crescimento do PIB equatoriano. |
O livro também alega que todos os países em
desenvolvimento tiveram amplo crescimento durante as décadas de 60 e 80,
segundo o autor, devido às políticas e instituições consideradas “ruins”. Um
autor que quer dar uma abordagem histórica, por que nem se quer menciona as
altas no preço do petróleo durante essas décadas? Será que a cotação do
petróleo não influenciou em nada?
De vez em quando, a gente escuta o mesmo
argumento (que o Brasil cresceu nas décadas de 60 e 70) para justificar
ditaduras. Ninguém lembra que esse regime econômico deu tão “certo” que acabou
num cenário de hiperinflação, desemprego, operações de overnight e a década de 80 virou a década perdida. Isso muito antes
do FHC (suposto liberal) pensar em ser presidente. Além do que, não existem informações oficiais sobre o PIB brasileiro nas décadas de 60 e 70, como se vê no gráfico no Banco Mundial. Pode-se alegar que cresceu, assim como, que caiu.
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Evolução do PIB brasileiro. |
Minha última crítica aos argumentos do autor é
que ele prevê três argumentos da oposição e os dois primeiros são exatamente
iguais. Parece que ele subestima um pouco a capacidade argumentativa do leitor.
O texto em si é redigido numa linguagem simples e inteligível, visando a um
público amplo.
Em resumo, o autor faz grande avanço em propor
uma análise do desenvolvimento por meio do entendimento histórico. Mas ele
constrói seus pontos de vista com embasamento histórico parcial, limitado a
alguns eventos dos países desenvolvidos, negligenciando totalmente o contexto
interno dos países em desenvolvimento e contextos históricos que influenciaram
igualmente todos os países, independentemente do grau de desenvolvimento.
Muito obrigada a todos (as) vocês que acompanham
o nosso trabalho. Por favor, fiquem à vontade para deixar críticas e sugestões.
Boa Semana! Boas Leituras!
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