AS ORIGENS DO TOTALITARISMO - ANTISSEMITISMO

As Origens do Totalitarismo, obra máxima de Hannah Arendt, foi escrito, ampliado e expandido várias vezes. A primeira edição foi concluída em 1949 e publicada em 1951. Lembrando que a Segunda Guerra terminou em 1945, portanto, em 1949, havia só quatro anos do fim do Nazismo. Tudo estava muito recente na memória de todos e muitos buscavam responder: “Como tantas mortes de inocentes aconteceram? Por que esses eventos aconteceram? Será que poderia ser evitado?”. As Origens do Totalitarismo vem responder a essas perguntas. Ele é regularmente classificado como um dos melhores livros de não ficção do século XX.

O que eu acho particularmente impressionante em Hannah Arendt é a capacidade dela de ler, entender e citar documentos de várias origens (tanto de um lado quanto do outro) com imparcialidade. Ela não teme citar um historiador nazista quando ele está certo. Além disso, ela escreveu tudo numa época sem computador e ferramentas de busca online. Então, ela teve que viajar para ir buscar ou ficar sentada numa biblioteca por horas (até dias) para fazer uma análise meticulosa dos fatos. Quando a gente lê tudo, numa linha coerente de raciocínio, é um fato impressionante, esforço quase sobre-humano.


O livro, com mais de 800 páginas na edição brasileira, se divide em três partes: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo. A primeira parte, segundo o prefácio da terceira parte, se manteve idêntica em todas as edições subsequentes. As segunda e terceira partes foram reescritas parcial ou totalmente.

Antissemitismo

A palavra antissemitismo significa aversão aos semitas. Os semitas são um conjunto de vários povos, entre os mais conhecidos, estão os árabes e os judeus. O termo semita vem da Bíblia e significa descendente de Sem, filho de Noé (da arca). Hoje em dia, o termo antissemitismo é muito associado à aversão só dos europeus contra os judeus da Europa central (também chamados de asquenazes). É esse caso que Hannah Arendt analisa. Ela faz uma análise histórica da evolução econômica e da sociedade de classes na Europa, a partir do feudalismo na Idade Média para o capitalismo da Revolução Industrial, e de como os judeus passaram de uma classe fundamental para financiar o regime a uma classe social sem função explícita e desprotegida pelo Estado. Não dá para fazer um paralelo com a condição com os judeus sefaradis da Península Ibérica.

Hannah Arendt destrói vários mitos comuns associados ao holocausto. Um deles é de que os judeus sempre foram odiados e, por isso, era inevitável que algum governo tentasse exterminá-los, portanto, que jamais seria possível fazer isso com outro povo. Os judeus teriam um “estigma” de perseguição. Consideração pessoal, os turcos também fizeram uma perseguição semelhante aos armênios. E os armênios não eram um povo “especial” ou “odiado por toda humanidade” antes.

Em linhas gerais, a filósofa defende que a ideia de igualdade dos cidadãos perante a lei é perturbadora para os seres humanos. Numa sociedade muito diversa, essa ideia de igualdade é tão perturbadora, é tão duro se ver igual a alguém que nós não consideramos nosso igual, que nós tendemos a nos juntar a grupos de pessoas que nós consideramos “mais iguais” a nós. Assim que um desses grupos toma o poder sem restrições (e para que isso aconteça, é preciso haver também outras condições), ele começa a perseguir os grupos que ele reconhece como “diferentes”. No limite, eu aplico esse conceito para a relação entre homens e mulheres e os preconceitos sexuais.

O caso Dreyfus

Para desenvolver suas ideias, Hannah Arendt analisa detalhadamente o caso Dreyfus e um caso de corrupção de uma construtora no Canal do Panamá. Dreyfus é um alto oficial judeu francês que é acusado de alta traição, embora não haja provas claras, ele é condenado e enviado para Ilha do Diabo (uma prisão de segurança máxima nas Guianas Francesas). É pedido um segundo julgamento e isso dividiu a França em dois, assim como bipolarização PT e PSDB no Brasil. Havia defensores apaixonados tanto da inocência quanto da culpa de Dreyfus e, o grupo que autora chama de ralé, aqueles que defendiam que Dreyfus devia ser preso e sofresse independentemente se ele fosse culpado ou não. Esse julgamento foi acompanhado por toda mídia da época (não consegui achar referências sobre como ele foi acompanhado no Brasil).

Edição em livro da LP&M Pocket da Carta aberta de Zola
sobre o caso Dreyfus.

O escritor francês Zola escreveu seu famoso manifesto J’accuse (Eu acuso!), acusando o presidente da França de ser conivente com a execução de um inocente, Dreyfus. Alguns acreditam que a morte suspeita de Zola alguns anos mais tarde, na verdade, foi um assassinato motivado pelo ódio de ele ter defendido Dreyfus. Existem três versões cinematográficas sobre essa carta de Zola, a primeira é um filme francês mudo J'accuse de 1919, a segunda é um remake, agora com áudio, de 1938 (dirigida por Abel Gance) e a terceira é uma coprodução norte-americana e britânica de 1958, traduzida no Brasil, como: O julgamento do capitão Dreyfus.

Terceira versão para o cinema do caso Dreyfus (1958).

Voltando ao julgamento, Dreyfus foi condenado novamente, mas isso ficou muito mal para França mundialmente. A França estava às vésperas de inaugurar a Exposição Universal, um evento comercial que existe até hoje e gera milhões de receita para o país. O governo francês temeu que outros países boicotassem a Exposição Universal por causa da repercussão do caso Dreyfus. O parlamento resolveu absolver e soltar Dreyfus, apesar de, legalmente, o parlamento não ter autoridade para isso. Não consigo deixar de pensar que, quando Hannah Arendt analisa o julgamento de Dreyfus (essencialmente uma questão jurídica), ela estava ganhando experiência e fazendo um rascunho para analisar o julgamento do nazista Eichmann em Israel. Eichmann em Jerusalém é outro livro incrivelmente bem escrito da autora. Leitura obrigatória.

Quando Hannah Arendt escreveu isso, em 1949, ela estava vivendo como refugiada nos EUA, ela escreve que os EUA são um desafio para essa ideia, pois, sendo uma sociedade composta por povos de diversas origens e tentando estabelecer, pela lei, que todos sejam iguais, a sociedade americana estava construindo um “ninho” para que movimentos persecutórios, iguais ao nazismo, nascessem. Eu me lembrei tanto da Ku Klux Klan quanto das atuais restrições a muçulmanos no território norte-americano.

Como vemos o muçulmano hoje

Durante o nazismo, a definição de judeu era um conceito tão amplo e flexível quanto desejável pelas autoridades. Inicialmente parece que apenas os asquenazes eram considerados judeus de fato. 

Viktor Frankel, psiquiatra que sobreviveu a campo de concentração, no livro Em Busca de um Sentido, relata a conversa de dois meninos com menos de 10 anos, na qual, um fala para o outro algo como “Porque Deus não quis que nós nascêssemos sefaradis? Os nazistas não veem os sefaradis. Nós poderíamos estar tomando água de coco numa praia da América do Sul agora, ao invés de estar aqui.”. Além da perseguição ser restrita a um grupo único chamado aleatoriamente de “judeu”, a definição varia aleatoriamente quanto a algo genético ou a uma crença religiosa. Santa Teresa Benedita da Cruz era uma freira católica que ninguém duvidava da fé cristã. Mas foi morta num campo de concentração por ter sangue judeu. O próprio Hitler e seu fotógrafo não podiam provar que não tinham sangue judeu, mesmo assim, foram considerados “puros”. Ou seja, a definição do que era um judeu ou não era beeeeeem flexível.

Criança muçulmana orando. Imagem do Pixabay.

Hoje em dia, o medo do “muçulmano”, a associação do islamismo com o terrorismo é muito comum. Da mesma forma, a definição do que seja um muçulmano varia muito conforme interesses particulares. É importante ressaltar que muçulmanos não necessariamente são árabes e, também, árabes não necessariamente são muçulmanos. O Islã, crença dos muçulmanos de várias origens étnicas, é uma religião monoteísta, fundada no século VII, que prega bons princípios e cujos falsos seguidores cometeram/cometem crimes em seu nome. Aliás, os falsos seguidores de quase todas as religiões já fizeram isso antes. Mas, eles são "diferentes", usam roupas "diferentes", falam uma língua "estranha", comem uma comida "estranha", podem casar com várias mulheres, têm famílias "estranhas", etc. Todo esse estranhamento choca. Eu receio que a atual fobia a muçulmanos se aplique ao que Hannah Arendt disse. Numa sociedade que se propõem a garantir direitos iguais para todos, é difícil aceitar que um grupo tão diferente, como os muçulmanos, também possa ter direitos iguais.

Especificamente para quem quer entender a Guerra da Síria, a explicação mais simples, imparcial e em português, que eu encontrei foi a do Canal Nostalgia. Recomendo. Segue o link.


Muito obrigada por ler o nosso trabalho. Por favor, fique à vontade para deixar comentários, críticas e sugestões.

Boa semana! Boas leituras!

Comentários

  1. O vídeo podia ser colocado em uma privada para as merda escutaram porque esse cara é uma merda pura! Ele está falando no canal errado.

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  2. Claúdia, o blog 500 livros não apóia e suporta todas as opiniões do Canal Nostalgia. Apenas acreditamos que ele tem uma abordagem didática para explicar temas relevantes para um público de baixa escolaridade. Para isso, é preciso simplificação. E toda simplificação pode pecar em alguns aspectos.Pelo seu comentário, entende-se que você se sente com raiva do que foi dito no vídeo. Mas não conseguimos entender o motivo dessa raiva. Talvez você possua familiares pessoalmente envolvidos no conflito, que tenham uma outra opinião ou vivência, por exemplo. Você tem toda razão em expressar seus sentimentos e dar as suas razões. Por favor, fique à vontade para explicar claramente quais os argumentos do vídeo te deixam com raiva e o porquê, além de qual o seu entendimento do conflito na Síria. Só não serão aceitas palavras de baixo calão e apologia à violência. Muito obrigada.

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